Enjaulados

Falta ar. O corredor amarelado pela lâmpada incandescente fraca é mais quente que o resto da delegacia. Os presos gritam palavrões quando chegamos, depois, bem rápido, pedem ajuda. Mãos pra fora da grade, o gesto de unir os dedos indica a principal reclamação: não há espaço pra todo mundo.
Numa mesma cela estão o pedreiro que não pagou a pensão dos filhos, o ladrão com mais de 5 passagens, o traficante preso por matar um viciado com dívidas, outro traficante que liderava uma quadrilha, alguns reincidentes, alguns inocentes que não tem como provar o que contam. Quando apontamos a câmera, exibem apenas os olhos, os mesmos olhos e a mesma identidade: são indesejáveis.
Ninguém quer aqueles homens. Eu não quero estar ali. Sinto-me exposta ao esperar que o cinegrafista faça as imagens. Cruzo os braços, não sei se sorrio, se endureço o rosto. Não sei o que quero com a matéria, não acredito em solução. Só quero acabar logo, prender a respiração pra não absorver o mau cheiro que parece já ter penetrado minhas roupas, meu cabelo, minha mente.
O delegado aparece pra ver se preciso de alguma coisa e pergunta se eu não me importo de estar tão perto de bandidos perigosos. Não tenho escolha, preciso ouví-los. Sei que não respondi a pergunta, mas não posso confessar meu medo — não ali. A verdade é que eu preferia estar mergulhando com tubarões. Sei que são feras que me espreitam e sei que é o revólver na mão do policial que nos acompanha que impede que um deles agarre meu braço.
Ergo minha voz e pergunto quem vai falar por eles. Gritos apontam “Negão”, trinta e poucos anos, barbudo, magro, muito magro, pouco maior que eu. Pergunto pelo que ele foi preso, diz que roubou um carro. Quero saber como é viver assim, ele acha que já vi o bastante pra formar minha opinião, mas descreve as noites em que dormem grudados, pele suada, colada na do outro. Fala que não há água pra descartar a sujeira no vaso, que falta água pro banho. Diz que não vê a família desde que foi preso, quer que o juiz olhe para o caso dele. Penso que foi esperança que identifiquei na voz do preso, mas não tenho certeza.
Todos repetem o mantra: “erramos, mas somos gente, não merecemos isso.” Ao repetir que são gente, parecem que querem se convencer do que dizem. Insistem no “somos gente, temos família” como quem tenta agarrar uma bóia no mar pra não sucumbir ao envenenado ar da cela. Ser gente, ter família é um amparo que se distancia toda vez que a jaula se abre só pra mais um entrar.
Encaro os olhos desconfiados e enxergo exilados da espécie —se foram homens, se voltarão a ser, quem sabe? Hoje não passam de fantasmas nos delírios de uma sociedade que dorme enferma.

4 pensamentos sobre “Enjaulados

  1. Tive praticamente as mesmas sensações quandro fiz matéria sobre superlotação de celas nas delegacias, no 1º Distrito Policial. Belíssima descrição, Nilce. Parabéns pelo novo blog.

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